terça-feira, janeiro 20, 2009 | Autor: Ebenézer Teles Borges
O soneto, transcrito no final deste texto, é um dos meus favoritos. Nele, o poeta – homem, mortal e pecador – se expressa em forma de prece, como se tentando despertar para o diálogo aquele que lhe é superior – Deus, eterno e perfeito. O homem precisa de Deus, disso o poeta é ciente. Mas a recíproca não é igualmente verdadeira?

No início do soneto, Gregório de Matos Guerra assume a postura de um crente reverente e submisso, mas por pouco tempo. Logo ele se põe a argumentar com Deus, numa demonstração de racionalidade que uns interpretam como lucidez e outros como loucura. Seja como for, é notável sua ousadia, especialmente em se tratando de um homem que viveu sob os rigores do Brasil Colônia (século XVII).

Nos primeiros versos o poeta se reconhece como pecador, não por sua descrença, falta de fé ou por ações reprovadas pelo clero. "Pecar", segundo ele, é atitude inerente ao ser humano. Mais que isso, é condição sine qua non para que o homem seja de fato humano. Por outro lado, "perdoar" é próprio da natureza de Deus, de modo que e é no exercício do perdão que toda a Sua glória e divindade se manifestam.

Gregório enxerga aí uma certa cumplicidade entre homem e Deus, pois essas características (pecar e perdoar) os mantém ligados ao gerar, a cada pecado humano, uma nova necessidade de perdão divino. Conseqüentemente, quando mais humano se é, mais divino Deus terá a oportunidade de ser.

Esse argumento faz sentido? Para um teólogo talvez não; para o poeta, muito provavelmente sim.

Fico imaginando a cena: vejo o poeta em seu quarto modesto para os padrões atuais. É noite e ele acende o lampião. Uma luz oscilante e pálida toma conta do ambiente, delineando silhuetas e formas. Com o lampião na mão ele avança lentamente em direção a uma velha mesa onde costuma passar horas trabalhando, refletindo, dando aos sentimentos e inquietações a forma de poesia e prosa. Subitamente, sua atenção é despertada pela dança sutil das sombras que alguns objetos inertes projetam ao serem tocados pela trêmula luz em movimento. Esse jogo entre luz e sombras lhe serve de inspiração e ele exclama para si mesmo: "Não há luz sem trevas, assim como não há dia sem noite... Riqueza e pobreza, força e fraqueza parecem estar interligados... Não há reino sem súditos, assim como não existe pai sem filho... Como poderia haver Deus (perfeito) sem o homem (imperfeito)?". E conclui: "Não, não é possível. Deus precisa de mim tanto quanto eu dEle. Sem EU não há TU".

E tendo feito essa descoberta (continuo imaginando), ele prossegue no jogo, de maneira consciente e ousada. Não pede perdão; negocia. Não se vê mais em posição de inferioridade e sim de igualdade, afinal, é cúmplice de Deus, parceiros num mesmo jogo. E concluindo, nos últimos versos, ele se supera ao insinuar que Deus tem a obrigação de perdoá-lo, sob pena de ter Sua glória ameaçada.

Esse Gregório é demais!

Segue o soneto, cujo título é "A Jesus Cristo Nosso Senhor".

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-nos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


Referências:
[1] Gregório de Matos Guerra - http://www.biblio.com.br/conteudo/GregoriodeMatos/GregoriodeMatosGuerra.htm
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2 comentários:

On 21 de janeiro de 2009 às 16:13 , Enéias Teles Borges disse...

De fato é espetacular! Quem, em "sã Consciência" não vive trama igual?

Bom texto.

 
On 22 de janeiro de 2009 às 23:12 , Ricardo disse...

Realmente, não fosse o ser humano não existiria Deus.

 
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