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quarta-feira, março 18, 2009 | Autor: Ebenézer Teles Borges
Tempos atrás, ao visitar o Forte São João em Bertioga, tive a oportunidade de observar cópias de documentos antigos, oriundos do período colonial. Tais documentos me fizeram pensar a respeito da evolução da língua portuguesa. Nossa língua está em constante processo de adaptação e mudança. Novas palavras são a ela incorporadas constantemente, outras se tornam obsoletas, outras adquirem novos significados, enquanto outras se esvaziam de sentido e caem em desuso.

Com efeito, os especialistas afirmam que "toda língua muda e varia"[1]. Varia no espaço (de região em região, de país em país) e muda ao longo do tempo. Essa mudança no tempo é tão significativa que, se a esquadra de Cabral milagrosamente ancorasse hoje em um de nossos portos, seus tripulantes enfrentariam sérias dificuldades em nos entender e em se fazer compreendidos por nós. É que quanto mais recuamos no tempo, tanto mais difícil nos é compreender o nosso próprio idioma, cujas palavras, estruturas e inflexões se nos apresentam menos familiares.

Para ilustrar esse fato, transcrevo abaixo os três versos iniciais da "Cantiga da Ribeirinha" [2], um dos textos mais antigos de nossa língua. Sua autoria é atribuída a Paio Soares de Taveirós e data do século XII (1189 ou 1198):

"No mundo non me sei parelha,
mentre me for' como me vay,
Ca ja moiro por vos - e ay! "

Pergunto a você, falante nativo da língua portuguesa: conseguiu captar o sentido desse texto? Discerniu-lhe com clareza o significado? Apreendeu-lhe a essência? Entendeu o que o autor expressou em palavras?

É provável que sua resposta tenha sido "não". Fique tranquilo. Essa incompreensão é aceitável e até mesmo natural, afinal, entre esse texto e nossos dias há um intervalo de mais de oitocentos anos, durante os quais a língua portuguesa mudou, evoluiu. Até mesmo os especialistas reconhecem, admitem, a dificuldade de lidar com esse texto. Note o que dizem: "Este texto desafia a interpretação dos estudiosos. Seu sentido continua bastante obscuro. Não se pode concluir nem mesmo se trata de uma cantiga de amor ou de escárnio."[3]

Observe que estamos falando de um texto que foi redigido em português. É fato que se trata de português antigo, também conhecido como galego-português ou galaico-português [4]. Mesmo assim, é inegável a existência de um forte vínculo histórico/cultural/linguístico entre ele e o idioma que você e eu empregamos em nosso dia-a-dia. Algumas de suas palavras nos soam íntimas. Outras, porém, parecem-nos desconhecidas. Consequentemente, o sentido do texto se torna uma incógnita tanto para nós quanto para especialistas em linguística.

É importante salientar que a compreensão de um texto, mesmo que seja uma produção atual, não depende exclusivamente de fatores linguísticos. Fatores extralinguísticos – sociais, culturais, econômicos, preferências políticas, crenças, etc. – podem interferir e frequentemente interferem no processo de leitura, compreensão e atribuição de sentido. Em outras palavras, o que sou, o contexto em que vivo, meus valores, minhas crenças, minhas expectativas, meus temores, meu nível sócio-cultural, meu estado de espírito, tudo isso pode interferir e, de fato, interfere no processo de leitura, compreensão e atribuição de sentido.

Em vista disso, podemos presumir, com convicção, que um mesmo texto pode ser, e com frequência é, objeto de interpretações diferentes quando lido por pessoas diferentes (ou até pelo mesmo leitor, em diferentes momentos).

Em se tratando de texto antigo, como a "Cantiga da Ribeirinha", o distanciamento no tempo e consequentemente do contexto no qual ele foi concebido, torna o cenário mais nebuloso, incerto e até mesmo misterioso, aumentando o grau de dificuldade e a probabilidade de que incorramos em interpretação equivocada.

Tais dificuldades seriam ainda maiores se o texto em questão fosse mais antigo e produzido em outro idioma e cultura com os quais nossa afinidade fosse menor ou inexistente.

Em vista disso, não poderia deixar de tocar em um ponto delicado. A religião cristã se organiza em torno de um livro antigo (bastante antigo!) e oriundo de outra cultura. No Brasil, pra não falar do Ocidente, há um elevado número de denominações cristãs distintas e, em alguns aspectos, até antagônicas, fundamentadas num mesmo livro, num mesmo texto. A pergunta que se faz é: por que há tanta diversidade de interpretação?

Porque, como já foi dito anteriormente, a construção de sentido está diretamente relacionada ao agente, isto é, àquele que lê e interpreta. Na minha opinião, essa diversidade interpretativa deve ser encarada como algo normal, natural, comum e previsível.

Voltando aos três primeiros versos da "Cantiga da Ribeirinha", uma possível tradução para o nosso "português brasileiro" é a seguinte:

"No mundo não conheço ninguém igual a mim,
enquanto acontecer o que me aconteceu,
pois eu morro por você e ai! "

A poesia na íntegra, bem como algumas traduções, podem ser encontradas aqui[5] e aqui[6]. Observe que se trata de "traduções", pois o "sentido", este continua e continuará envolto em muito mistério...


Referências:

[1] Marcos Bagno. A língua de Eulália: novela sociolingüística, 11ª ed., São Paulo: Contexto, 2001.
[2] Trovadorismo: ttp://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/trovadorismo
[3] Trovadorismo - http://www.jackbran.pro.br/literatura/trovadorismo_portugues.htm
[4] Português antigo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Galaico-portugu%C3%AAs
[5] Wikipédia: Paio Soares de Taveirós - http://pt.wikipedia.org/wiki/Paio_Soares_de_Taveir%C3%B3s
[6] Superinteressante, “Texto português surgiu no século XII” - http://super.abril.com.br/superarquivo/1996/conteudo_115538.shtml
sábado, março 15, 2008 | Autor: Ebenézer Teles Borges
O último sábado do verão amanheceu com cara de inverno. Olhei pela janela do quarto e saudei o dia que acabara de nascer. Observei que o sol, mais preguiçoso que eu, ainda estava deitado e se escondia sob espesso cobertor de nuvens plúmbeas. Por um breve instante me senti tentado a lhe seguir o exemplo e retornar à cama, agasalhar-me sob a manta quente e aconchegante e dar vazão ao ócio, aproveitando o sábado (que significa "descanso") para me recuperar da semana exaustiva que chegava ao fim.

Mas, se por um lado o corpo se sentia seduzido por cama e repouso, por outro, a mente se mostrava inquieta e faminta por ação. Ainda bem que ação mental combina com inércia corporal e assim, reconciliado interiormente, pus-me a pensar e, em seguida, a entreter um diálogo amistoso e sereno com minha esposa, diálogo esse que se enveredou pelos meandros da lingüística e da crítica textual. Reconheço que, para muitos, tal assunto não seria objeto de conversa serena e agradável, e sim um tema acre, maçante e impróprio para uma manhã de sábado. Não é esse o nosso caso. Minha esposa é especialista em língua portuguesa e lingüística e eu sofro de uma atração (quase) insana por línguas (quase) mortas, como grego antigo, latim, hebraico e o brasileiríssimo tupi. E foi nessa conversa amistosa que a ouvi repetir uma interessante definição de leitura, sobre a qual gostaria de refletir um pouco: "Ler é atribuir sentido".

Ler não é apenas decifrar um código. Decifrar implica em conhecer a correspondência entre um conjunto de símbolos gráficos e seu equivalente valor fonético-visual. Em outras palavras, decifrar é tão somente decodificar. Dá-se o nome de "analfabeto funcional" a quem consegue somente decodificar a escrita sem, contudo, interpretar o sentido do texto como um todo. No Brasil, por exemplo, embora o percentual de analfabetos seja de apenas 11,8%, o índice de analfabetismo funcional é assustador, chegando a 75% da população.

Toda essa conversa sobre leitura e atribuição de sentido derivou de um comentário inicial a respeito do texto bíblico. Nossa formação religiosa nos ensinara a enxergar a Bíblia como um livro especial, tanto em sua concepção quanto em sua preservação ao longo das eras. Por muito tempo cremos na existência de uma verdade exarada em suas páginas. Assim sendo, suas palavras e textos encerravam, em si mesmas, verdades preservadas milagrosamente e que, se entendidas "corretamente", poderiam explicar o enigma da vida, elucidar os mistérios do passado e desvelar os segredos do futuro. Em contraposição a essa crença, a realidade nos apresentava um panorama diferente, de contradição dentro da própria comunidade crente, de falta de consenso quanto à interpretação "verdadeira" e "indiscutível" do texto bíblico. Há centenas de denominações religiosas cristãs, todas supostamente fundamentadas na Bíblica, cada uma com suas peculiaridades que as põem em rota de colisão com as demais. O cenário, como um todo, é caótico, isto é, há tantas diferenças interpretativas, que inviabilizam a união dessas igrejas em torno de um corpo doutrinário comum, apoiado no texto bíblico, que é único.

A conclusão a que chego é que ou o "verdadeiro sentido" não é atributo inerente ao texto (ou "apenas" ao texto), ou de fato "ler é atribuir sentido". Nesse caso, cada pessoa letrada (excluem-se aqui os analfabetos funcionais) interpreta o texto bíblico em conformidade com sua essência, na qual se incluem vários fatores: lingüísticos, cognitivos, históricos, socioculturais, interacionais, entre outros [1]. Para confirmar essa suspeita, vou recorrer à exemplificação. Temo, contudo, que este exemplo não seja plenamente compreendido por aqueles que não têm intimidade com o texto bíblico e com as tradições cristãs. Se for esse o seu caso, peço-lhe desculpas, antecipadamente. Tentarei ser didático, estruturando o exemplo em duas partes: (1) citarei um texto bíblico contendo palavras atribuídas a Jesus e (2) apresentarei uma leitura, isto é, uma atribuição de sentido amplamente aceita num passado recente, e atualmente descartada.

Parte 1 – Palavras de Jesus:

"Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós: quando virdes todas estas coisas [isto é, guerras, terremotos etc.], sabei que está próximo, às portas [isto é, Jesus em breve voltará à terra]. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar" (Mt 24.32-35).

Parte 2 – Busca do sentido do texto.

Qual é o "verdadeiro" sentido dessa parábola? ("parábola" é uma narrativa alegórica que transmite uma mensagem indireta). Como entendê-la e interpretá-la?

Hall Lindsey, famoso evangelista e escritor cristão, expôs sua interpretação desse texto num livro que se tornou campeão de vendas nas décadas de 70 e 80: "A Agonia do Grande Planeta Terra". Tive a oportunidade de ler essa obra em algum momento da década de 1980. Resumidamente ele concluiu o seguinte:

1. Parábola da Figueira – A palavra "figueira" é usada diversas vezes na Bíblia como uma imagem da nação de Israel. Hall Lindsey assumiu que, nessa parábola, a figueira é, de fato, Israel.

2. Quando os ramos da figueira se renovarem e as folhas brotarem... – Israel (a figueira), após um período de inverno, isto é, de inexistência política reconhecida, voltaria à vida, voltaria a florescer como nação. Isso, segundo ele, aconteceu em 1948 quando o estado de Israel foi criado e legitimado pela ONU.

3. Não passará essa geração sem que tudo se cumpra, isto é, sem que Jesus volte – Ele se perguntou: quanto dura uma geração em termos bíblicos? Aproximadamente quarenta anos, foi a resposta assumida. O resto é aritmética básica: 1948 + 40 = 1988. Portanto, o fim desta civilização e o regresso de Jesus à terra deveriam ocorrer em algum momento até 1988, quarenta anos após a reemergência de Israel como nação.

4. Passarão os céus e a terra, mas não as minhas [de Jesus] palavras – Eis aqui a garantia de que isso, de fato, aconteceria.

Considerações finais...

Estamos em 2008, vinte anos após a data limite sugerida por Hall Lindsey, e Jesus ainda não voltou. Cabe aqui refazer a pergunta: qual é o sentido dessa parábola contada pelo Mestre?

Ao longo da História, certamente houve várias interpretações diferentes - e divergentes - desse texto. Cada leitor, movido por convicções sinceras e sentimentos verdadeiros, atribuiu a ele um determinado sentido. Apesar disso, ouso afirmar que esse texto permanece virgem, instigante e disponível a quem o queira ler. Cada novo leitor o verá com novos olhos e, nessa interação, um novo sentido poderá aflorar... Parece magia. Recriação. Renovação. Mas é apenas leitura, afinal, "ler é atribuir sentido".

Referências:
[1] Alfabetização e Construção de um Sentido na Produção Textutal -
www.cereja.org.br/arquivos_upload/Cleusa%20Maria%20AMatos_out2005.pdf
quarta-feira, dezembro 26, 2007 | Autor: Ebenézer Teles Borges
Escrevi recentemente, de forma laica, a respeito do "Sentido do texto" (I Parte e II Parte). Para tanto, fiz extensivo uso de palavras. Selecionei-as atenciosamente, organizei-as com esmero, embalei-as com muito cuidado num "pacote-texto" e as publiquei neste blog na expectativa de que pudessem transmitir a outros as idéias que fluíam em minha mente.

Enquanto redigia, pensava no poder mágico das palavras; poder para expressar idéias, evocar lembranças, convencer mentes, comover corações, despertar emoções, fazer sorrir, chorar, sonhar; poder capaz de retratar em cores vivas, no palco da mente, a realidade que nos cerca e da qual fazemos parte. De acordo com Dicionário Filológico da Academia Brasileira de Letras [1] nosso universo de palavras é composto por trezentos e sessenta mil itens. E pensar que tudo isso foi construído mediante combinações de apenas vinte e três elementos simbólicos que compõem nosso alfabeto!

Palavras enfeitiçam – seduzem, atraem, cativam, encantam. Pensei em uma delas: "amarelo" e a imaginação logo se tingiu de gradações douradas e se perdeu em divagações e delírios: Será que o amarelo que meus olhos apreendem é o mesmo amarelo que outras pessoas enxergam? Creio que não. O mais provável é que, do mundo real, não percebamos as cores com a mesma clareza, nitidez e intensidade. Contudo, no mundo simbólico e mágico das letras, a palavra "amarelo" desperta em nós ligação semântica semelhante: cor de ouro, de gema de ovo, de açafrão, de canário da terra, de camisa da seleção... E no "LCD" da mente, ganha vulto e movimento a figura do rei Pelé: estampa dez no manto amarelo; soco no ar; vibração. É mais um gol da seleção...

E é nesse clima de total embriaguez no álcool das palavras que me pego indagando a respeito da palavra "palavra"... O que se pode dizer sobre ela? É possível defini-la?

Definir: estabelecer limites. Os limites de uma palavra são demarcados por espaços ou por algum sinal de pontuação. Ao definir uma palavra limitamos seu valor, restringimos-lhe o significado. Em seguida a usamos para designar, rotular, dar nome a coisas do mundo real. "Palavra" é o rótulo genérico – o nome – que usados para fazer referência a qualquer vocábulo. "Palavra" é coletivo de palavras.

O português é uma língua neolatina [2]. Nossa palavra "palavra" deriva do latim paraböla que nos remete ao grego parabolé que significa "comparação". Será que parábola e palavra são a mesma coisa?

Cresci num meio cristão. Desde cedo tomei ciência das parábolas de Jesus. Para mim, parábola e palavra nunca foram sinônimas. Conheci parábola como um recurso retórico mediante o qual Jesus transmitia preceitos morais. Eram narrativas alegóricas que faziam uso de analogia ou comparação. Cito três: A Dracma perdida; A ovelha perdida; O Filho pródigo (
Lucas 15) [3]. A propósito, qual é mesmo o significado da palavra "pródigo"? Pense um pouco.

Pródigo: sinônimo de gastador, esbanjador, perdulário. Sinônimos: palavras diferentes na escrita e semelhantes no significado. Pois é, parábola e palavra já foram sinônimas, num passado distante.

Transcorria o século IV EC quando S. Jerônimo traduziu a Bíblia para o Latim. Nascia a
Vulgata [4], versão que, mais tarde, no Concílio de Trento [5], foi declarada a oficial da igreja romana. Foi nela que "parábola" tomou o significado de "palavra", superando o uso do latim verbum [6]. Graças a Jerônimo e à popularidade da Vulgata é que hoje usamos "palavra" em lugar de "verbo". Não fosse por ele, talvez o título deste artigo seria O verbo "verbo" e não A palavra "palavra".



Referências Bibliográficas

[1] Dicionário Filológico da Academia Brasileira de Letras -
http://www.academia.org.br/ Ver também http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/lin290820012.htm
[2] Português língua neolatina -
http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_portuguesa
[3] Parábolas de Jesus -
http://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/15
[4] Vulgata -
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vulgata
[5] Concílio de Trento -
http://pt.wikipedia.org/wiki/Conc%C3%ADlio_de_Trento
[6] Hitória da palavra PALAVRA -
http://steinhardts.wordpress.com/2007/07/14/a-historia-da-palavra-palavra/
sexta-feira, dezembro 21, 2007 | Autor: Ebenézer Teles Borges
Em artigo anterior, deixei sem resposta a pergunta: "O sentido do texto está no próprio texto?". Aqui tentarei encontrar uma resposta satisfatória. Entendo que uma mesma pergunta, quando direcionada a públicos diferentes, pode resultar em respostas diferentes. Em sendo assim, uma conclusão prévia já me é possível: o "sentido" não reside apenas no texto, mas depende sempre de um interpretador, a saber, o leitor. No entanto, ainda é muito cedo para concluir. Ainda estou no parágrafo introdutório.

Demonstrei, ainda no artigo anterior, que palavras são símbolos. A palavra "pão" não é pão – não mata a fome. A palavra "fogo" não é fogo – não queima. A palavra "água" não é água – não molha, nem mata a sede. Ratifico aqui essa constatação e a reforço com outra metáfora: palavra e texto são espelhos.

Um bom espelho é aquele que reflete, com o maior grau de precisão possível, uma realidade que está fora dele. Um espelho nada afirma e nada conclui por si mesmo, apenas reflete, apenas revela. O texto é um espelho diante do qual o leitor se deixa refletir, isto é, é levado à reflexão. Perante o texto o leitor se põe a especular – indaga, investiga, questiona, estuda, busca entender. "Especular" vem do latim speculum que significa espelho.

Texto é espelho, não realidade. A realidade pode ser experienciada em silêncio e sem palavras. O texto requer interpretação.

O que é interpretar?

Na antiga Roma, quando duas partes entravam em litígio, um agente era convocado para atuar como mediador. A esse agente davam o nome de "interpres". Os sacerdotes também eram tratados como "interpres" - mediavam entre os deuses e os homens; traduziam os oráculos divinos e os apresentavam aos homens. "Interpretar" é traduzir, é pôr-se no meio, é construir ponte. Entre texto e realidade também se faz necessária uma ponte, um "interpres": o leitor.

Recorramos agora a um exemplo bastante conhecido pela comunidade cristã, a eucaristia. Pouco antes de seu julgamento e crucificação, Jesus reuniu seus discípulos para a última ceia. A certa altura, tomou o pão, repartiu-o com todos e lhes disse: "Tomai e comei, este é o meu corpo". Em seguida, serviu-lhes o vinho, acompanhado pelas palavras: "Isto é o meu sangue". (Marcos, 14:22-24).

O que Jesus quis dizer com isso? É possível recuperar o significado original desse texto?

Quando o autor ainda está presente entre nós, podemos endereçar-lhe perguntas como essas, mas não é este o caso. Esse fato ocorreu há dois mil anos e, de lá para cá, muitas gerações se sucederam e com elas surgiram diversas interpretações.

Os teólogos católicos, por exemplo, optaram pela interpretação literal. Ao participar da eucaristia, o crente, de fato, come a carne e bebe o sangue de Jesus. Mediante as palavras do padre um milagre acontece: a transubstanciação. Eucaristia é antropofagia!

No Brasil colônia, em certas circunstâncias, o canibalismo era praticado. Guerreiros de tribos rivais, quando aprisionados, eram devorados, porque se acreditava que, dessa forma, tomava-se posse de sua força e bravura. É em algo parecido que acreditam os cristãos católicos. Ao se alimentarem com o verdadeiro corpo e sangue de Jesus, transubstanciado, estão tomando posse da santidade e pureza que a Ele pertencem.

Lutero não concordou com isso e propôs uma interpretação alternativa. Para ele o pão e o vinho não têm sua essência alterada, mas a ela se juntam a essência do corpo e do sangue de Jesus. A esse fenômeno chamou de consubstanciação.

Calvino foi além e viu nas palavras de Jesus apenas simbolismo.

Afinal, qual desses personagens capturou o sentido original do texto, aquele que Jesus tentou passar a seus discípulos? Posso hoje afirmar que uma dessas interpretações é mais correta que as demais? Aqui cabe o bom senso. Particularmente, hesito em acreditar em milagres. Por isso não me identifico com a interpretação católica, mas há muitos que a preferem.

E você, o que prefere? A interpretação dos pais da Igreja, de Lutero, de Calvino, ou outra qualquer?

Retomo a pergunta que motivou esse artigo: O sentido de um texto está no próprio texto? Eu já encontrei a minha resposta. E você?
quinta-feira, dezembro 20, 2007 | Autor: Ebenézer Teles Borges
À guisa de introdução, considere as "pegadinhas com pontuação" apresentadas abaixo.

1. Pontue as duas frases abaixo e descubra o siginficado de cada uma delas.

  1. Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe do fazendeiro era também o pai do bezerro.
  2. Maria toma banho porque sua mãe diz ela traga a toalha.

2. Pontue a frase abaixo de duas maneiras distintas para obter resultados diferentes.

  1. Carolina nossa secretária comprou um automóvel.
  2. Carolina nossa secretária comprou um automóvel.

3. Novamente: Pontue a frase abaixo de duas maneiras diferentes para obter resultados antagônicos.

  1. Irás voltarás não morreras.
  2. Irás voltarás não morreras.
Antes de apresentar a pontuação correta das questões acima, vamos refletir um pouco sobre o título desse artigo: "O Sentido do Texto".

A palavra "sentido" pode assumir significados diferentes (veja alguns
aqui). Neste artigo, emprego-a como "aquilo que uma palavra ou frase pode significar num contexto determinado"[1]. Sentido aqui, portanto, implica em significado. Já a palavra "texto" refere-se, neste contexto, a um conjunto de palavras organizadas de modo a transmitir uma idéia. "Idéia", por sua vez, é a representação mental de alguma coisa concreta ou abstrata.

Não sei se me fiz claro o bastante... Vou tentar novamente. A coisa funciona mais ou menos assim:
  1. Primeiramente, tenho uma idéia;

  2. Em seguida, tento reproduzir essa idéia por meio de palavras. Palavras são "símbolos", isto é, algo usado para representar outra coisa. A palavra "fogo", por exemplo, evoca à mente um determinado fenômeno de natureza abrasiva. Posso, contudo, escrevê-la num papel e tocá-la sem medo de me queimar, isto porque a palavra "fogo" é um símbolo e, portanto, não possui a capacidade de entrar em combustão. De igual modo, as palavras que uso para representar a "minha idéia" não se constituem na idéia em si. São uma tentativa de revelá-las, uma aproximação simbólica daquilo que de fato é, em minha mente.

  3. Por fim, o conjunto de palavras usadas para descrever a "minha idéia" compõe um texto.

Com o texto pronto e publicado, entra em cena um outro ator – o Leitor. O leitor é aquele garimpeiro que explora o texto e percorre as palavras em busca de sentido. Mas será ele capaz de encontrar o "sentido original" - a minha idéia - que fomentou a elaboração do texto?

Ao considerar as três pegadinhas acima, noto que, se eu, enquanto escritor, cometo deslizes na aplicação da pontuação, meu texto se mostrará desprovido de sentido para o leitor. Vejo aqui uma relação direta de causa e efeito entre escrever com pontuação adequada e a absorção do sentido por parte do leitor.

Retornemos agora às pegadinhas propostas acima:
  1. Solução da primeira pegadinha:

    • Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe. Do fazendeiro era também o pai do bezerro.
    • Maria toma banho porque sua. Mãe, diz ela, traga a toalha.

  2. Na segunda pegadinha observamos que uma mesma frase, pontuada de forma diferente, assume significados diferentes:

    • Carolina, nossa secretária, comprou um automóvel.
    • Carolina, nossa secretária comprou um automóvel.

  3. Na última pegadinha, a pontuação não só altera o significado como conduz a conclusões opostas. Observe:

    • Irás. Voltarás. Não morrerás.
    • Irás. Voltarás? Não. Morrerás.
Ficam aqui registradas algumas outras questão importantes a serem consideradas:

  • A pontuação adequada é garantia suficiente de que o "sentido original" do texto será recuperado?
  • Existe algum tipo de "DNA" no texto que possa ser decifrado com segurança, viabilizando assim o resgate do significado original?
  • O sentido do texto está no próprio texto?

Referências Bibliográficas:

[1] Houaiss, verbete "sentido" - http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=sentido&stype=k
[2] Michaelis, verbete "sentido" - http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=sentido
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