quarta-feira, março 18, 2009 | Autor: Ebenézer Teles Borges
Tempos atrás, ao visitar o Forte São João em Bertioga, tive a oportunidade de observar cópias de documentos antigos, oriundos do período colonial. Tais documentos me fizeram pensar a respeito da evolução da língua portuguesa. Nossa língua está em constante processo de adaptação e mudança. Novas palavras são a ela incorporadas constantemente, outras se tornam obsoletas, outras adquirem novos significados, enquanto outras se esvaziam de sentido e caem em desuso.

Com efeito, os especialistas afirmam que "toda língua muda e varia"[1]. Varia no espaço (de região em região, de país em país) e muda ao longo do tempo. Essa mudança no tempo é tão significativa que, se a esquadra de Cabral milagrosamente ancorasse hoje em um de nossos portos, seus tripulantes enfrentariam sérias dificuldades em nos entender e em se fazer compreendidos por nós. É que quanto mais recuamos no tempo, tanto mais difícil nos é compreender o nosso próprio idioma, cujas palavras, estruturas e inflexões se nos apresentam menos familiares.

Para ilustrar esse fato, transcrevo abaixo os três versos iniciais da "Cantiga da Ribeirinha" [2], um dos textos mais antigos de nossa língua. Sua autoria é atribuída a Paio Soares de Taveirós e data do século XII (1189 ou 1198):

"No mundo non me sei parelha,
mentre me for' como me vay,
Ca ja moiro por vos - e ay! "

Pergunto a você, falante nativo da língua portuguesa: conseguiu captar o sentido desse texto? Discerniu-lhe com clareza o significado? Apreendeu-lhe a essência? Entendeu o que o autor expressou em palavras?

É provável que sua resposta tenha sido "não". Fique tranquilo. Essa incompreensão é aceitável e até mesmo natural, afinal, entre esse texto e nossos dias há um intervalo de mais de oitocentos anos, durante os quais a língua portuguesa mudou, evoluiu. Até mesmo os especialistas reconhecem, admitem, a dificuldade de lidar com esse texto. Note o que dizem: "Este texto desafia a interpretação dos estudiosos. Seu sentido continua bastante obscuro. Não se pode concluir nem mesmo se trata de uma cantiga de amor ou de escárnio."[3]

Observe que estamos falando de um texto que foi redigido em português. É fato que se trata de português antigo, também conhecido como galego-português ou galaico-português [4]. Mesmo assim, é inegável a existência de um forte vínculo histórico/cultural/linguístico entre ele e o idioma que você e eu empregamos em nosso dia-a-dia. Algumas de suas palavras nos soam íntimas. Outras, porém, parecem-nos desconhecidas. Consequentemente, o sentido do texto se torna uma incógnita tanto para nós quanto para especialistas em linguística.

É importante salientar que a compreensão de um texto, mesmo que seja uma produção atual, não depende exclusivamente de fatores linguísticos. Fatores extralinguísticos – sociais, culturais, econômicos, preferências políticas, crenças, etc. – podem interferir e frequentemente interferem no processo de leitura, compreensão e atribuição de sentido. Em outras palavras, o que sou, o contexto em que vivo, meus valores, minhas crenças, minhas expectativas, meus temores, meu nível sócio-cultural, meu estado de espírito, tudo isso pode interferir e, de fato, interfere no processo de leitura, compreensão e atribuição de sentido.

Em vista disso, podemos presumir, com convicção, que um mesmo texto pode ser, e com frequência é, objeto de interpretações diferentes quando lido por pessoas diferentes (ou até pelo mesmo leitor, em diferentes momentos).

Em se tratando de texto antigo, como a "Cantiga da Ribeirinha", o distanciamento no tempo e consequentemente do contexto no qual ele foi concebido, torna o cenário mais nebuloso, incerto e até mesmo misterioso, aumentando o grau de dificuldade e a probabilidade de que incorramos em interpretação equivocada.

Tais dificuldades seriam ainda maiores se o texto em questão fosse mais antigo e produzido em outro idioma e cultura com os quais nossa afinidade fosse menor ou inexistente.

Em vista disso, não poderia deixar de tocar em um ponto delicado. A religião cristã se organiza em torno de um livro antigo (bastante antigo!) e oriundo de outra cultura. No Brasil, pra não falar do Ocidente, há um elevado número de denominações cristãs distintas e, em alguns aspectos, até antagônicas, fundamentadas num mesmo livro, num mesmo texto. A pergunta que se faz é: por que há tanta diversidade de interpretação?

Porque, como já foi dito anteriormente, a construção de sentido está diretamente relacionada ao agente, isto é, àquele que lê e interpreta. Na minha opinião, essa diversidade interpretativa deve ser encarada como algo normal, natural, comum e previsível.

Voltando aos três primeiros versos da "Cantiga da Ribeirinha", uma possível tradução para o nosso "português brasileiro" é a seguinte:

"No mundo não conheço ninguém igual a mim,
enquanto acontecer o que me aconteceu,
pois eu morro por você e ai! "

A poesia na íntegra, bem como algumas traduções, podem ser encontradas aqui[5] e aqui[6]. Observe que se trata de "traduções", pois o "sentido", este continua e continuará envolto em muito mistério...


Referências:

[1] Marcos Bagno. A língua de Eulália: novela sociolingüística, 11ª ed., São Paulo: Contexto, 2001.
[2] Trovadorismo: ttp://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/trovadorismo
[3] Trovadorismo - http://www.jackbran.pro.br/literatura/trovadorismo_portugues.htm
[4] Português antigo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Galaico-portugu%C3%AAs
[5] Wikipédia: Paio Soares de Taveirós - http://pt.wikipedia.org/wiki/Paio_Soares_de_Taveir%C3%B3s
[6] Superinteressante, “Texto português surgiu no século XII” - http://super.abril.com.br/superarquivo/1996/conteudo_115538.shtml
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4 comentários:

On 19 de março de 2009 às 11:58 , Cleiton Heredia disse...

Esta postagem fez-me lembrar das interpretações proféticas de Daniel e Apocalipse onde uma simples variação em uma palavra ou letra (em hebraico, aramaico ou grego) pode alterar todo o significado.

O chifre pequeno de Daniel 8 é um exemplo clássico. Basta uma pequena variação no gênero da palavra (masculino, feminino ou neutro) para alguns aplicarem o chifre a Antíoco Epifânio ou à Roma.

 
On 19 de março de 2009 às 15:21 , Enéias Teles Borges disse...

Demorou para postar mas o fez com estilo. Beleza mesmo!

 
On 24 de junho de 2009 às 17:24 , Anônimo disse...

caro,
Ebenézer Teles Borges
foram muito estimulante suas considerações, e sua maneira de se expressar completaram uma das mais primorosas obras do gênero ao qual eu tive a felicidade de conhecer.
De seu mais novo fã, Héber

Obrigado,

 
On 24 de junho de 2009 às 17:48 , Anônimo disse...

Héber,

Obrigado pelas palavras de incentivo e volte sempre.

 
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