sexta-feira, dezembro 21, 2007 |
Autor: Ebenézer Teles Borges
Em artigo anterior, deixei sem resposta a pergunta: "O sentido do texto está no próprio texto?". Aqui tentarei encontrar uma resposta satisfatória. Entendo que uma mesma pergunta, quando direcionada a públicos diferentes, pode resultar em respostas diferentes. Em sendo assim, uma conclusão prévia já me é possível: o "sentido" não reside apenas no texto, mas depende sempre de um interpretador, a saber, o leitor. No entanto, ainda é muito cedo para concluir. Ainda estou no parágrafo introdutório.
Demonstrei, ainda no artigo anterior, que palavras são símbolos. A palavra "pão" não é pão – não mata a fome. A palavra "fogo" não é fogo – não queima. A palavra "água" não é água – não molha, nem mata a sede. Ratifico aqui essa constatação e a reforço com outra metáfora: palavra e texto são espelhos.
Um bom espelho é aquele que reflete, com o maior grau de precisão possível, uma realidade que está fora dele. Um espelho nada afirma e nada conclui por si mesmo, apenas reflete, apenas revela. O texto é um espelho diante do qual o leitor se deixa refletir, isto é, é levado à reflexão. Perante o texto o leitor se põe a especular – indaga, investiga, questiona, estuda, busca entender. "Especular" vem do latim speculum que significa espelho.
Texto é espelho, não realidade. A realidade pode ser experienciada em silêncio e sem palavras. O texto requer interpretação.
O que é interpretar?
Na antiga Roma, quando duas partes entravam em litígio, um agente era convocado para atuar como mediador. A esse agente davam o nome de "interpres". Os sacerdotes também eram tratados como "interpres" - mediavam entre os deuses e os homens; traduziam os oráculos divinos e os apresentavam aos homens. "Interpretar" é traduzir, é pôr-se no meio, é construir ponte. Entre texto e realidade também se faz necessária uma ponte, um "interpres": o leitor.
Recorramos agora a um exemplo bastante conhecido pela comunidade cristã, a eucaristia. Pouco antes de seu julgamento e crucificação, Jesus reuniu seus discípulos para a última ceia. A certa altura, tomou o pão, repartiu-o com todos e lhes disse: "Tomai e comei, este é o meu corpo". Em seguida, serviu-lhes o vinho, acompanhado pelas palavras: "Isto é o meu sangue". (Marcos, 14:22-24).
O que Jesus quis dizer com isso? É possível recuperar o significado original desse texto?
Quando o autor ainda está presente entre nós, podemos endereçar-lhe perguntas como essas, mas não é este o caso. Esse fato ocorreu há dois mil anos e, de lá para cá, muitas gerações se sucederam e com elas surgiram diversas interpretações.
Os teólogos católicos, por exemplo, optaram pela interpretação literal. Ao participar da eucaristia, o crente, de fato, come a carne e bebe o sangue de Jesus. Mediante as palavras do padre um milagre acontece: a transubstanciação. Eucaristia é antropofagia!
No Brasil colônia, em certas circunstâncias, o canibalismo era praticado. Guerreiros de tribos rivais, quando aprisionados, eram devorados, porque se acreditava que, dessa forma, tomava-se posse de sua força e bravura. É em algo parecido que acreditam os cristãos católicos. Ao se alimentarem com o verdadeiro corpo e sangue de Jesus, transubstanciado, estão tomando posse da santidade e pureza que a Ele pertencem.
Lutero não concordou com isso e propôs uma interpretação alternativa. Para ele o pão e o vinho não têm sua essência alterada, mas a ela se juntam a essência do corpo e do sangue de Jesus. A esse fenômeno chamou de consubstanciação.
Calvino foi além e viu nas palavras de Jesus apenas simbolismo.
Afinal, qual desses personagens capturou o sentido original do texto, aquele que Jesus tentou passar a seus discípulos? Posso hoje afirmar que uma dessas interpretações é mais correta que as demais? Aqui cabe o bom senso. Particularmente, hesito em acreditar em milagres. Por isso não me identifico com a interpretação católica, mas há muitos que a preferem.
E você, o que prefere? A interpretação dos pais da Igreja, de Lutero, de Calvino, ou outra qualquer?
Retomo a pergunta que motivou esse artigo: O sentido de um texto está no próprio texto? Eu já encontrei a minha resposta. E você?
Demonstrei, ainda no artigo anterior, que palavras são símbolos. A palavra "pão" não é pão – não mata a fome. A palavra "fogo" não é fogo – não queima. A palavra "água" não é água – não molha, nem mata a sede. Ratifico aqui essa constatação e a reforço com outra metáfora: palavra e texto são espelhos.
Um bom espelho é aquele que reflete, com o maior grau de precisão possível, uma realidade que está fora dele. Um espelho nada afirma e nada conclui por si mesmo, apenas reflete, apenas revela. O texto é um espelho diante do qual o leitor se deixa refletir, isto é, é levado à reflexão. Perante o texto o leitor se põe a especular – indaga, investiga, questiona, estuda, busca entender. "Especular" vem do latim speculum que significa espelho.
Texto é espelho, não realidade. A realidade pode ser experienciada em silêncio e sem palavras. O texto requer interpretação.
O que é interpretar?
Na antiga Roma, quando duas partes entravam em litígio, um agente era convocado para atuar como mediador. A esse agente davam o nome de "interpres". Os sacerdotes também eram tratados como "interpres" - mediavam entre os deuses e os homens; traduziam os oráculos divinos e os apresentavam aos homens. "Interpretar" é traduzir, é pôr-se no meio, é construir ponte. Entre texto e realidade também se faz necessária uma ponte, um "interpres": o leitor.
Recorramos agora a um exemplo bastante conhecido pela comunidade cristã, a eucaristia. Pouco antes de seu julgamento e crucificação, Jesus reuniu seus discípulos para a última ceia. A certa altura, tomou o pão, repartiu-o com todos e lhes disse: "Tomai e comei, este é o meu corpo". Em seguida, serviu-lhes o vinho, acompanhado pelas palavras: "Isto é o meu sangue". (Marcos, 14:22-24).
O que Jesus quis dizer com isso? É possível recuperar o significado original desse texto?
Quando o autor ainda está presente entre nós, podemos endereçar-lhe perguntas como essas, mas não é este o caso. Esse fato ocorreu há dois mil anos e, de lá para cá, muitas gerações se sucederam e com elas surgiram diversas interpretações.
Os teólogos católicos, por exemplo, optaram pela interpretação literal. Ao participar da eucaristia, o crente, de fato, come a carne e bebe o sangue de Jesus. Mediante as palavras do padre um milagre acontece: a transubstanciação. Eucaristia é antropofagia!
No Brasil colônia, em certas circunstâncias, o canibalismo era praticado. Guerreiros de tribos rivais, quando aprisionados, eram devorados, porque se acreditava que, dessa forma, tomava-se posse de sua força e bravura. É em algo parecido que acreditam os cristãos católicos. Ao se alimentarem com o verdadeiro corpo e sangue de Jesus, transubstanciado, estão tomando posse da santidade e pureza que a Ele pertencem.
Lutero não concordou com isso e propôs uma interpretação alternativa. Para ele o pão e o vinho não têm sua essência alterada, mas a ela se juntam a essência do corpo e do sangue de Jesus. A esse fenômeno chamou de consubstanciação.
Calvino foi além e viu nas palavras de Jesus apenas simbolismo.
Afinal, qual desses personagens capturou o sentido original do texto, aquele que Jesus tentou passar a seus discípulos? Posso hoje afirmar que uma dessas interpretações é mais correta que as demais? Aqui cabe o bom senso. Particularmente, hesito em acreditar em milagres. Por isso não me identifico com a interpretação católica, mas há muitos que a preferem.
E você, o que prefere? A interpretação dos pais da Igreja, de Lutero, de Calvino, ou outra qualquer?
Retomo a pergunta que motivou esse artigo: O sentido de um texto está no próprio texto? Eu já encontrei a minha resposta. E você?
Categoria:
bíblia,
interpretação de texto,
língua portuguesa,
religião
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3 comentários:
Concordo com você quanto a simbologia das palavras. O arranjo das mesmas num texto procura refletir o pensamento do escritor. Portanto, penso que um texto é espelho do pensamento de seu criador, cabendo ao leitor interpretar, através da simbologia das palavras, o que se passava em sua mente. Um texto, portanto, não reflete a realidade do leitor, mas sim a de seu criador, contudo, devido a simbologia das palavras, por vezes um texto pode ser interpretado ao bel-prazer de quem o lê. Agora sim, a interpretação do texto é que reflete a realidade do leitor.
Veja Marcos 14:22-24, citado por você. Ali, Cristo pôs em palavras um pensamento. Elaborou e transmitiu uma mensagem através de simbolos fonéticos. Marcos ouviu e interpretou essa mensagem, transmitindo-a posteriormente através de simbolos escritos - um texto. Os leitores desse texto, desde então, o interpretam. Alguns literalmente, caso dos católicos, outros simbolicamente, caso dos adventistas. Cada uma dessas interpretações reflete o pensamento de seus leitores. De suas realidades mentais.
A prova de que a interpretação de um texto está intimamente ligada à realidade mental do leitor é o fato de grande parte da cristandade aceitar a doutrina do domingo e da Trindade, sendo que essas palavras sequer constam no texto bíblico.
Quanto a pergunta que você faz no final do seu artigo: O sentido de um texto está no próprio texto? - minha resposta é a seguinte: o sentido de um texto está originalmente no pensamento de seu criador e, posteriormente na interpretação que cada leitor lhe queira dar. Portanto, após a morte do escritor, perde-se o sentido original do texto. É como no caso de uma pintura, um quadro. Depois da morte do artista, quem poderá explicar com propriedade a natureza de sua inspiração?
Se o texto for bem elaborado de forma a refletir da maneira mais precisa possível o pensamento daquele que o escreveu, eu diria que neste caso o sentido do texto estará no próprio texto.
Porém, temos que levar em consideração que por mais claro e preciso que esteja um texto escrito, ainda assim ele pode não cumprir o seu propósito de transmitir o pensamento de seu autor, devido à incapacidade do leitor de interpreta-lo da forma correta.
Muitas vezes esta incapacidade é ocasionada por uma forte necessidade do leitor em compatibilizar (adequar) a interpretação daquilo que está escrito à sua realidade e conceitos pré-concebidos.
O problema de interpretação do texto de Marcos 14:22-24 pode ser comparado ao problema de interpretação ocasionado pelas palavras de Cristo relatadas em João 6:53-58. Seus ouvintes se escandalizaram com aquele discurso (v.60), mas Jesus, atento a reação de seus ouvintes (v.61), explicou melhor o que estava tentando lhes dizer: "O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que vos tenho dito são espírito e vida" (v.63).
Se tentarmos explicar Marcos 14 a partir de João 6 para um católico que não quer deixar de crer na transubistanciação devido a isto colocar em cheque sua fé na igreja católica, ele continuará interpretando-o da forma que lhe é mais conveniente (o mesmo acontece com aos membros da IASD quanto ao dogma da trindade).
Ampliando um pouco mais o assunto, poderíamos falar da forma como criacionistas e evolucionistas interpretam aquilo que está registrado no livro da natureza. Ambos observam o mesmo fenômeno natural, porém cada um o interpreta da forma que lhe é mais conveniente.
Neste caso o problema está no registro que não é suficientemente preciso e possibilita as duas interpretações, ou está na interpretação tendenciosa que cada um faz do fato observado?
Um excelente artigo. Não há muito a acrescentar além de uma multiplicidade desnecessária de exemplos.
Obrigado