sexta-feira, maio 29, 2009 | Autor: Ebenézer Teles Borges
No princípio era assim: acima de tudo e de todos estava Deus. Com Sua barba longa, cabelos brancos, corpo roliço e barriga avantajada, lembrava-me o bom e velho Papai Noel. Passava a maior parte do tempo acomodado em Seu enorme trono, em divino e santo ócio. Às vezes bocejava. Eu imaginava que, quando lúcido, Suas atitudes se assemelhassem às de meu avô, um velhinho bonachão e divertido que gostava de contar histórias exageradas. E pouco abaixo dEle estavam seus dois filhos, Jesus e Cristo, aos quais Ele delegara a missão de cuidar do Universo.

O primeiro dos filhos, Jesus, sempre trajava vestes brancas e resplandecentes. Seu aspecto era elegante e nobre e trazia no rosto um sorriso cativante e gentil. Vivia cercado de anjos, num lugar idílico, ocupando-se com a nobre tarefa de edificar mansões e construir uma cidade de ouro para nós. Uma vez concluída essa empreitada, Ele retornaria à Terra com pompa e circunstância, acompanhado por legiões de anjos e ao som de trombetas e cantos. Seria um dia de festa! Em seguida nos conduziria ao nosso novo lar, ao paraíso celeste, onde viveríamos em gozo eterno. Eu adorava Jesus. Ele era um dos meus heróis, o maior de todos, o mais forte e bondoso. E eu, como qualquer criança educada nas tradições cristãs, queria estar com Ele, sentar em Seu colo, ouvir-Lhe a voz macia e sussurrar-Lhe aos ouvidos minhas preces inocentes.

O segundo filho, Cristo, era-me uma fonte de muitos tormentos. Sua presença era sempre evocada em situações constrangedoras, quando eu cometia algum deslize. Diziam-me: "Quando Cristo voltar você vai pagar!". Era o bastante para que o medo e a culpa me apertassem o peito e a tristeza inundasse meu coração. Como temia esse Cristo! Quão melhor seria minha vida se Ele não existisse! Ainda me lembro de Seu aspecto sombrio: vestes negras, semblante austero, olhar intimidador, postura ameaçadora, tendo na mão um livro de capa preta no qual anotava todas as minhas falhas e faltas.

O pior é que todo dia eu aprontava uma. Não que eu fosse uma criança insubordinada. De fato era mais bem comportado que a maioria de meus coleguinhas. Mesmo assim incorria em frequentes desvios de conduta: um atrito com outra criança, uma recomendação não seguida, um comportamento inadequado, uma insubordinação aos pais, um sei lá o quê... e lá vinha uma punição e/ou era pronunciada a maldita sentença: "Quando Cristo voltar você vai pagar!". Ah, como esse Cristo me aborrecia! Queria tanto que Jesus acabasse com Ele! Eu orava em segredo pedindo a Jesus que O exterminasse. Mas Jesus era bonzinho demais, até mesmo com Cristo, e o deixava viver e prosseguir me atormentando.

Vivia assim a curiosa experiência de amar a Jesus e odiar a Cristo. O primeiro era meu amigo, o segundo, inimigo temerário. Um era o mocinho, o outro, o bandido. Buscava o colo de um e fugia da presença do outro. Desejava ardentemente que Jesus voltasse, e tremia nas bases só em pensar na volta de Cristo. Quanta confusão em minha cabeça infantil! Confusão essa que só foi desfeita mais tarde, quando me fizeram crer que Jesus e Cristo eram a mesma pessoa. Que alívio! Eu estava enganado!

Mas essa era apenas uma parte da história. Tudo que eu atribuía ao "Cristo mau", muito mais se consubstanciava em um ser inferior e perigoso chamado Diabo ou Satanás. E foi assim, com uns quatro ou cinco anos de idade, que o Diabo apareceu pela primeira vez em minha vida e começou a me rondar.

Meu alívio durou pouco. Descobri que esse tal Diabo era uma ameaça bem maior, além de ser feio de doer: cabeça grande, orelhas pontudas, pé-de-bode, pele encarnada, corcunda, olhar sinistro, boca grande, dentes afiados, língua de cobra... bota feio nisso! Era só eu ficar sozinho ou em lugar mal iluminado que o Capeta se revelava. Que medo! Sentia um frio na barriga e saía em disparada em busca de proteção. Pra piorar, disseram-me que o Diabo não estava sozinho. Sob seu comando havia um monte de diabinhos que fariam de tudo pra me levar para o inferno. E o inferno, que era a cada do Diabo, era um lugar medonho, quente, abafado, com labaredas enormes pra todo lado. Um segundo lá e eu viraria torresmo. Mais um e viraria fumaça. Que horror! O jeito era ficar na luz, me pegar com Jesus e tratar de ser bonzinho pra escapar do Chifrudo.

Não entendia por que Jesus não voltava logo para acabar com o Diabo. Isso ninguém me explicava. Por que Ele estava demorando tanto? Eu estava disposto a abrir mão da mansão de ouro que Ele estava preparando para mim, contanto que Ele me livrasse logo da presença incômoda do Diabo. Mas Jesus não voltava e eu fui crescendo e aprendendo a lidar melhor com meus medos e minhas crenças.

Hoje, enquanto escrevo esse texto, essas lembranças me divertem. Mas naquela época, com tão pouca idade, tudo me parecia muito real e assustador. Minha angústia e sofrimento eram verdadeiros e profundamente dolorosos. Tinha medo da escuridão e dormia sempre com a luz acesa. Por um bom tempo, vivi num mundo assombrado por demônios. Por que será que adultos bem intencionados contam esse tipo de história para crianças?

Enfim, tudo isso é passado. Nada mais que lembranças. Hoje, a forma como vejo a Deus, a Jesus Cristo e ao Diabo mudou bastante. Outra boa notícia é que não temo mais ficar sozinho, nem tenho medo da escuridão. Mas, por precaução, prefiro não assistir a filmes de terror. Vá lá que o Demônio volte...
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7 comentários:

On 30 de maio de 2009 às 11:23 , Ricardo disse...

Ebenézer,

Que texto divertido!

“Por que será que adultos bem intencionados contam esse tipo de história para crianças?” – Vai ver eles não são tão bem intencionados assim.

 
On 30 de maio de 2009 às 20:43 , Enéias Teles Borges disse...

Pelo menos você cresceu na medida em que os anos passaram. Algumas pessoas envelheceram, mas não cresceram e continuam a crer e difundir suas esperanças e seus medos...

 
On 31 de maio de 2009 às 18:37 , Enéias Teles Borges disse...

Pretendo "linkar" seu texto no meu blog. Pode? Achei-o fenomenal.

 
On 31 de maio de 2009 às 22:32 , Anônimo disse...

Enéias,

À vontade! E por falar em medo, você se lembra daquela episódio do poderoso Thor contra os Encantadores? (rs)

 
On 31 de maio de 2009 às 22:36 , Anônimo disse...

Ricardo,

É algo a se pensar!

 
On 1 de junho de 2009 às 16:59 , CH disse...

Ebenézer,

Me identifiquei muito com sua história. Tenho lembranças nítidas de pesadelos que tive aos 5, 8, 10 anos de idade, todos relacionados ao diabo.

Só que para mim, a frase de efeito era outra: "Se você não lembrar de Deus, quando precisar Dele, Ele também não vai lembrar de você". E lá ia eu rezar e rezar e rezar... tudo por puro medo.

 
On 1 de junho de 2009 às 18:11 , Cleiton Heredia disse...

Cara, enquanto lia sua postagem não parei de rir. Para falar a verdade estou rindo até agora e creio que irei rir por um bom tempo cada vez que me lembrar do que você escreveu.

Muito bom, mesmo!!!

Meu grande terror era de possessão demoníaca. Presenciei alguns casos na minha infância e juventude que me traumatizaram. Ficava sempre pensando que a qualquer momento o diabo poderia querer entrar no meu corpo, e então travava em minha mente verdadeiras batalhas contra as investidas do demônio.

Quem bom que a gente cresce, não é mesmo?

 
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