sábado, março 22, 2008 | Autor: Ebenézer Teles Borges
Dificilmente conseguimos abordar certos temas sem paixão. Jesus é um desses temas, talvez o mais polêmico para nós que vivemos no Ocidente cristão.

Fruto de fecundação incomum à cultura judaica (e corriqueira à mitologia grega, na qual divindades fertilizam mulheres), Ele nasceu de parto natural, de mãe virgem e que virgem permaneceu após ter dado à luz. Sua história é permeada de mistérios, a começar por um longo período de silêncio, seguido por um curto e tumultuado ministério marcado por discursos polêmicos, parábolas enigmáticas, profecias ambíguas, milagres inacreditáveis e teofanias extraordinárias. Amado por uns, odiado por outros, incompreendido pela maioria, encontrou-se com a morte durante as comemorações da principal festa nacional de Israel, a Páscoa - três anos após o início de Seu ministério. Mas, isso não foi o fim. Jesus ressurgiu do túmulo, voltou à vida, venceu a morte e reapareceu triunfante para escrever o final apoteótico de Sua missão na Terra: seu retorno ao Céu, morada de Deus, evento esse testemunhado por alguns seguidores fiéis, os quais receberam, como recompensa, a promessa de que, em algum dia num futuro próximo, o próprio Jesus voltaria para resgatá-los deste mundo de dor e lágrimas.

Dois mil anos se passaram e muitos ainda aguardam o cumprimento dessa promessa; relêem a Bíblia, buscando, nas palavras de Cristo, sinais que reforcem essa fé e alimentem essa esperança... Nesta semana de Páscoa, o Ocidente cristão relembra, mais uma vez, a paixão (isto é, o sofrimento) de Jesus na Terra, nutrindo, desse modo, uma tradição milenar de fé nAquele que é considerado ao mesmo tempo Deus, Homem e Salvador da humanidade.

O que dizer de tudo isso? Verdade ou falsidade?

A resposta a essa pergunta dependerá do interlocutar a quem ela for dirigida. Muito provavelmente, a mente racional relutará em aceitar como veraz a fecundação de uma mulher por uma divindade, o nascimento virginal, qualquer um dos muitos milagres a Ele atribuídos, a ressurreição dos mortos e outras tantas narrativas quase impossíveis de serem comprovadas. O coração fiel, por outro lado, não encontrará muita dificuldade em tomar como certas todas essas coisas. É que a fé tem a singular capacidade de nos transportar para o interior de um mundo encantado. E uma vez lá dentro, qualquer narrativa, por mais fantasiosa que seja ou pareça, adquire a solidez de uma rocha.

Então, reformulo a pergunta: essa narrativa, parte importantíssima do discurso cristão, faz algum sentido?

Para esclarecer melhor essa questão, vou parafrasear uma ilustração proposta por Rubem Alves, em um de seus muitos livros[2], que ressalta a diferença entre verdade, falsidade e falta de sentido. Observe: quando afirmo que "o fogo é frio" estou enunciando uma falsidade, pois afirmei algo que todos entenderam, mas que não corresponde à verdade. Não há fogo frio. É da natureza do fogo ser quente. Porém, se faço uma afirmação incoerente como esta: "o fogo, diante da probabilidade, escureceu o silêncio", você ficará confuso, pois mesmo reconhecendo cada uma das palavras, não perceberá qualquer sentido na frase. Nesse caso, não posso afirmar que esse enunciado é falso, pois, para que seja declarado falso é necessário, primeiramente, que ele faça algum sentido.

Voltemos à pergunta anterior: a narrativa da vida Jesus conforme a temos nos Evangelhos – repleta de milagres, pontilhada de intervenções divinas, permeada de feitos sobrenaturais – é verdadeira, falsa, ou sem sentido?

Sou do ponto de vista de que a resposta é irrelevante e, ainda que se chegue a um consenso sobre essa questão, tal conclusão pouco influenciaria nos caminhos e nas escolhas do Ocidente cristão: muitos prosseguiriam crendo; outros permaneceriam céticos e um terceiro grupo manter-se-ia indiferente a tudo isso. É possível, ainda, identificar um quarto grupo, composto por "empreendedores", que enxergaria em tudo isso uma oportunidade comercial e a usaria para alavancar seus "negócios", seja vendendo cerveja, ovos de Páscoa, pacotes de viagens ou um lugarzinho no céu ao lado de Jesus.

Então, sendo que, para mim, a resposta à pergunta anterior é um tanto irrelevante, vou propor uma nova questão que me soa mais significativa e passível de ser respondida: o que há de verdadeiro na comemoração da Páscoa, que possa ser relacionado à pessoa de Jesus de Nazaré?

Talvez o sentimento sincero de alguns fiéis que, de fato, acreditam naquilo que seus lideres religiosos lhes ensinaram. Talvez o desejo oculto no coração humano de se encontrar com Alguém (Jesus) que lhe seja maior e mais forte; que seja humano o bastante para nos compreender e divino o suficiente para nos socorrer; que tenha resposta para as nossas indagações e solução para nossos problemas; que seja amigo, irmão e pai presente e palpável, que nos faça sentir capazes de enfrentar os desafios da vida, de cabeça erguida e com o coração aquecido pela certeza de que nossa existência faça algum sentido... Talvez a esperança de que tudo o que foi dito acerca de Jesus de Nazaré seja verdadeiro e que, de fato, Ele possa e queira nos valer e, um dia, regresse a este mundo, para nos explicar o porquê da vida ser tal qual é.

Com efeito, a Páscoa nos lembra, ainda, que existem algumas evidências favoráveis à existência desse Jesus histórico que andou pelas estradas empoeiradas do antigo Israel, dois mil anos atrás. Se esse Jesus foi o Filho de Deus ou um simples carpinteiro (ou pedreiro?) de Nazaré; se ressuscitou corpos ou se deu nova vida a espíritos desfalecidos; se curou cegos ou se ensinou os homens a enxergarem a vida sob nova perspectiva; se fez coxos andarem ou se injetou nas pessoas a convicção de que é possível sair da inércia e locomover-se em busca dos próprios sonhos; se prometeu um céu futuro ou se nos facultou a possibilidade e a capacidade de viver em um céu presente... não saberei responder.

Gosto de pensar que esse Jesus existiu e aproveito a Páscoa para relembrar alguns de Seus ensinamentos: viver uma vida de amor e respeito, acreditar no impossível, olhar para frente com esperança e otimismo, nunca abdicar da fé em si mesmo ("tua fé te salvou", disse Ele reiteradas vezes) e, se porventura a esperança enfraquecer, o otimismo cessar e a fé desfalecer, ainda assim, dar um passo adiante e apegar-se ao impossível: acreditar em milagres, acreditar em Deus...

Como você pôde perceber, fiz várias perguntas ao longo desse texto e reconheço que fui incapaz de oferecer respostas conclusivas a qualquer uma delas. Lamento. Resta-me fazer uma última recomendação: separe um tempo nessa Páscoa para refletir sobre a enigmática figura de Jesus de Nazaré. E, se desejar, poste aqui suas impressões a respeito dAquele que, para muitos, é o Deus que se fez homem para dar sentido à vida dos homens e, para outros, o homem a quem fizemos Deus, para, de igual modo, dar sentido à nossa própria existência.



Referências:

[1] Imagem - http://www.semipa.org.br/especiais/apaixao/images/intro.jpg
[2] O que é Religião - Rubem Alves, 1981, p. 39.
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4 comentários:

On 22 de março de 2008 às 20:43 , Anônimo disse...

Falso? Verdadeiro? Com ou sem sentido?... Achei sua reflexão coerente, pois, em se tratando de ser humano, linguagem e fé, não existem respostas únicas e questões fechadas.
Belo texto!

 
On 22 de março de 2008 às 21:02 , Enéias Teles Borges disse...

Excelente texto, como de costume.

Deus que se fez homem ou homem a quem fizemos Deus... Eis a questão. A sua proposta para reflexão, sendo Ele Deus ou não, é salutar e me apego a ela diariamente. Não sei se com fé ou com uma curiosa vontade de saber se é assim ou se não é.

A verdade é que minha vida sempre teve Jesus como referência e fica difícil abrir mão dEle, ainda que seja para questionar...

Abraços.

 
On 24 de março de 2008 às 08:35 , Cleiton Heredia disse...

Sobre Jesus, o que dizer de alguém que faz tais declarações?

- Eu sou o caminho, a verdade e vida;
- Ninguém vem ao Pai se não for por mim;
- Antes que Abraão existisse, eu sou;
- Tudo que vocês pedirem em meu nome, o Pai vos concederá;
- Filho, os teus pecados estão perdoados;
- O Pai a ninguém julga, mas concedeu ao filho todo o juízo;
- Algum de vocês pode me acusar de qualquer pecado?;
- Minhas palavras não passarão;
- Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.

Só existe 4 alternativas:

1) Os evangelistas mentiram ou se enganaram quanto ao que Jesus disse de fato;
2) Jesus mentiu;
3) Jesus era um auto-iludido (tipo um maluco que pensa ser Napoleão);
4) Jesus verdadeiramente era e ainda é o Filho de Deus, o Salvador.

Cada um decidi por si qual alternativa faz mais sentido.

 
On 2 de abril de 2010 às 09:17 , Anônimo disse...

Muito interessante sua discussão nesse texto
Meu comentário é o seguinte:
A bíblia e tudo o que está escrito nela faz parte de uma cultura de mais de 2 mil anos atras. Isso significa que quem escreveu não tinha os conhecimentos que temos hoje e fazia parte de uma cultura totalmente diferente. "Ahhh mas falam que foi Deus que passou a mensagem pra eles!!!" Sim, podemos interpretar os textos biblicos de forma a retirar algo realmente bom, mas quem garante que a voz "invisível" que o profeta ouvia era realmente de Deus? e mais: Um homem ignorante, orgulhoso e que se acha superior a todos os seres vivos vai dar ouvidos a uma voz, uma religião que diz que ele é "parente" do macaco? acho que não. Mas da ouvidos se a voz disser que foi feito e moldado pelo proprio Deus, e mais ouvidos ainda se o homem tiver sido moldado antes da mulher (eles eram extremamente machistas).
mudando para Jesus, não existe nada de absurdo na doutrina dele, ela se resume em amor e caridade, mas, tambem não foi ele que escreveu nada; foram os apostolos. Quanto à virgindade de Maria, acho que é coisa de homens machistas, e quanto a ressucitação... pode ser que estivessem vendo não o corpo, mas o espirito...
mas esses inconvenientes não abalam minha religiosidade.
a Pascoa é momeno de se lembrar dos ensinamentos de Jesus, embora tenham enfiado esse tal de coelinho no meio, pra ganhar dinheiro.
te aconselho a ler uma passagem do livro "O Evangelho segundo o Espiritismo", no capitulo IX, que diz sobre fé racional, sobre filtrar em que acreditar antes de crer cegamente, como muitos fazem hoje em dia.

 
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